segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Entrevista Andréia Dacal

Por: Fabio da Silva Barbosa

Andréia Dacal (primeira a esquerda)com as crianças e duas grandes amigas da Ocupação Mama África (Fernanda e Simone), em São Domingos, Niterói, RJ.


Mulher, cantora, poetisa, skatista, geógrafa, jornalista cultural, Andréia Dacal, há muito vem extrapolando as fronteiras de sua cidade natal (Niterói) e corajosamente vem abraçando o mundo com seu trabalho original e visceral. Versando sobre a condição humana, com sensibilidade e garra, canta com a alma, mensagens críticas e reflexivas, que fazem balançar não só o corpo, mas também as idéias. Inspirada por muitos elementos da escola jamaicana, como o dub poetry, roots, ragga, dancehall e niyabinghi, somada a sua pesquisa e intimidade com a música popular e regional brasileira, além de outras linguagens musicais, como o rap e o eletrônico, Andréia Dacal traz sempre boas novas a cena contemporânea do reggae brasileiro e mundial, através de suas constantes parcerias em álbuns internacionais do forte movimento Dub vanguardista europeu.
Sem pretensão, com um trabalho perseverante, amor pela música e respeito pela cultura e universo em torno do Reggae, a cantora segue sua trajetória com positivas contribuições na cena.

Como ocorreu o contato com o reggae?
Sempre fui sensível e interessada em música. Na adolescência já pesquisava, conversava e trocava muita informação e som com os colegas de escola. Procurava ouvir tudo que despertava e aguçava minha curiosidade. Música e manifestações artísticas de conteúdo revolucionário, sempre me despertaram um interesse maior. O conjunto de música, letra e atitude me conquistou. Tive acesso ao reggae, de forma mais profunda, aos 14 anos, conhecendo a obra de Bob Marley. Mergulhei com interesse e profunda identificação com o ritmo, proposta e mensagens. Acompanhei e dediquei maior atenção a esta cultura musical. Foi um divisor de águas. A identificação com o universo mítico, filosófico e cultural foi fulminante.

Como esse ritmo chegou ao Brasil?
Na década de 1970, músicos brasileiros são influenciados pelo reggae. Experiências foram tentadas por Jards Macalé, Luís Melodia e outros, mas Gilberto Gil levou a risca a influência, realizando um projeto que vendeu mais de 500 mil cópias. O compacto “Não Chores Mais”, versão em português de “No Woman, No Cry”, de Bob Marley. Aí o reggae se espalha pelos festivais de música no Pará, Maranhão e Bahia, caindo na graça dos moradores dessas regiões. Simultaneamente, em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo ganha espaço em bailes na periferia.
Em 1980, Bob Marley vem ao Brasil e promete voltar com o grupo Inner Circle, para uma turnê pela América Latina. Na mesma época, Peter Tosh se apresenta com grande sucesso no Festival de Jazz de São Paulo. O reggae começa a despontar no país quando Bob Marley faz a passagem, vitima do câncer, aos 36 anos, no dia 11 de maio de 1981. No entanto, ao contrário do que se especulou, o reggae e toda manifestação cultural em torno dele não morreu com seu precursor e influenciou novas criações e fusões musicais pelo mundo.
Os anos 80, no Brasil, foram marcados por inúmeros sucessos de artistas e bandas que tiveram no reggae sua maior inspiração e expressaram, muitas vezes, sentimentos, questões e opiniões que o reggae já vinha trabalhando de forma visceral desde sua origem.sob o ritmo das batidas sincopadas. Temas como injustiça social, criticas ao materialismo, violência urbana, racismo, todas estas questões sempre foram muito bem exploradas pelo reggae Jamaicano. Nomes como Cidade Negra, Paralamas do Sucesso, Tribo de Jah, entre outros, contribuíram para firmar a identificação com essa música e manifestação cultural junto ao público brasileiro.
Acredito que toda essa aceitação e identificação se deva ao fato do Brasil e a Jamaica terem muitas afinidades. Por exemplo, a formação de nosso povo, que também tem grande influência da cultura Africana. O reggae entoado sob a figura de um negro do terceiro mundo, aclamado nos 4 cantos do planeta, elevou a voz e o sentimento de milhões de pessoas. O reggae se tornou um hino, uma música que representa luta, resistência e a conquista de espaço junto a comunidade branca, conservadora e capitalista, para a livre manifestação contra toda e qualquer forma de opressão. Um bastão que de forma suave e natural desbravou o sistema e alcançou sua representatividade junto a ele. Acredito que essa força conquistada pelo povo negro da Jamaica, difundida para as demais comunidades do mundo, sob a forma deste manifesto pacifico, musical, artístico e corporal, através da dança, se tornou um veiculo a prova do tempo e seguirá conquistando e servindo de bandeira e símbolo para muitos países seguirem se expressando.

O reggae vai além do ritmo? Fale um pouco sobre esse movimento mais sólido.
Para muitos é apenas um ritmo, um segmento musical. Para outros, como eu, é mais que isso, porque estes buscam sua origem, história e com isso mais uma fonte de referência, aprendizado e até mesmo orientação. Tudo vai depender da afinidade e comprometimento do ouvinte. Se ele quiser ficar só no embalo da música, deleitar o espírito e se entreter, é isso que vai conseguir. Se quiser se aprofundar na mensagem, na cultura, na história, na fé, vai se deparar com um universo amplo e surpreendente, que pode abrir muitos leques de conhecimentos e reflexão. Cada um busca e encontra o que procura. E é esse o principal movimento, em minha opinião. O que parte do EU , das escolhas individuais, que depois acaba resultando em movimentos coletivos de indivíduos que pensam e se identificam, buscando objetivos de vida em comum. Mas, o principal movimento, na minha opinião, e mais sólido também, é a revolução pessoal que pode ocorrer a partir da identificação e compromisso de cada um em perceber o mundo sob uma nova ótica. A ótica do amor universal e da moral fraterna, ampliando seu raio de ação ao redor.

Existe uma vertente que é engajada na luta social. Como um movimento de harmonia e boas vibrações luta com um sistema desigual e predatório?
A história prova que a palavra, firmeza de caráter e comprometimento promovem grandes mudanças sociais e conjunturais. A idéia de que para transformar uma realidade injusta e miserável de esperança tem que vir através da força, da violência ou da imposição é coisa do sistema, do Estado. O povo em si, nunca optou pela guerra. É levado a conviver com o jogo de interesses de esferas invisíveis que pregam responder por todos, mas só respondem por eles mesmos. A musica reggae, através da mensagem Rastafari, prega amor, união, transformação de dentro para fora dos indivíduos, aponta para a autonomia, a liberdade e a tolerância... Por isso é forte e atemporal. Não existe revolução real que não ocorra naturalmente, sem imposições. Acredito na arte como a mais forte ferramenta de transformação e conquista de uma sociedade mais justa e humana. Bob Marley tem uma frase que se aplica bem a pergunta: “O reggae quando bate, você nunca sente dor”.

Há pouco tempo uma comunidade rastafari tradicional da Bahia foi fortemente reprimida pela polícia. Qual sua opinião sobre o assunto?
A polícia é um aparelho de controle a serviço do Estado, que tem hoje, os mesmos interesses de ontem: manter o poder, sua perspectiva do que é a “ordem” e os modelos de “bem viver” que interessem ao sistema financeiro. O Estado nunca viu o Rastafari com bons olhos, porque a visão Rastafari é crítica à sua forma de gestão e dominação. O Rastafari busca e incentiva a autonomia, através de uma série de desapegos as matrizes culturais de consumo que o Estado incentiva. Por ser uma visão e orientação definitivamente libertária, não existe imposição no caminho Rastafari, pois ele é uma escolha. Diferentemente das regras do sistema, que nos amarra nesta grande rede desde que nascemos,, quando somos registrados e identificados. Tudo que aprendemos até começarmos a construir certa individualidade nos pensamentos nos é transmitido através de valores passados pela escola, família, circulo social, etc.
Acredito que o Estado se torna frágil, necessitando se impor através da ordem e leis tendenciosas que não atendem aos interesses de todas as camadas da sociedade. Essa imposição, hoje mascarada pelo ideal de democracia, utiliza a força quando necessária, segundo sua perspectiva de manter a estabilidade deste sistema. É onde mora a injustiça e muitas vezes o abuso de poder do homem sobre o homem com o aval da lei. Isso é um grave obstáculo para a evolução social e humana.
Repudio toda forma de exploração e abuso de um homem sobre outro, repudio o Estado que intervém com violência e repudio os policiais, que a despeito de sua necessidade profissional, acatam ordens que vão contra a constituição. Repudio igualmente a mídia que usa histórias como estas para aumentar a audiência em cima da exploração sensacionalista de notícias transmitidas sem respeito a verdade.

Voltando ao lado mais musical: Como está o espaço para o reggae?
Sua constante superação, recriação e fusão com outros ritmos faz com que o cenário esteja sempre fresco, ao mesmo tempo em que não perde sua história e tradição. O espaço existe, mas ainda há muito que fazer: Resgatar sua importância cultural, focar aspectos da cultura musical jamaicana ainda pouco conhecidos ou divulgados... Conquistar a atenção e respeito junto as produções e realizações, para garantir uma estrutura mais organizada que atendam ao circuito .

A Ocupação Mama África foi o motivo de nosso primeiro contato. Com muita luta essa galera vem conseguindo conquistar seu direito a moradia. As últimas notícias foram animadoras.
Resumo minha opinião, citando um jargão muito divulgado pela Fist (Frente Internacionalista dos Sem Teto), que acredito que exprima muito bem a questão:
“Se morar é um direito, ocupar é um dever”.
A questão fundiária no Brasil, seja agrária ou urbana, é uma mazela histórica que o Estado continua negligenciando. Se o Estado lava suas mãos, cabe a nós, cidadãos, chamarmos atenção e lutarmos com dignidade e justiça para conquistar este direito quando ele nos é devido. A Mama África está fazendo isso, se colocando de forma ativa e positiva diante deste impasse e está sendo vitoriosa. Que sirva de exemplo para muitos casos similares no Brasil. Estamos juntas, porque ainda há muito a se fazer e me sinto orgulhosa por poder estar somando nesta frente de resistência, como colaboradora espontânea, na luta contra mais esta forma de opressão. Sou fã das guerreiras e crianças da Ocupação Mama África. Para mim é uma grande inspiração poder somar na conquista do direito, não só de moradia, mas no reconhecimento da identidade e força desta comunidade.

Para fechar:
Minha mensagem é que cada um busque mais de si para que assim possa oferecer mais e o melhor para o mundo. Todos somos parte do processo de evolução para uma realidade mais justa e feliz para todos.
Aproveito também para deixar uma importante reflexão de sua Majestade Imperial Haille Selassie, referência principal dentro da visão e pensamento Rastafari , que sintetiza com muita sabedoria os grandes desafios de nossa civilização e humanidade:
”Através da história, tem sido a inatividade daqueles que poderiam ter agido; a indiferença daqueles que deveriam saber melhor; o silêncio da voz da justiça quando ela mais importava; que tem tornado possível ao mal triunfar.” Haille Selassie
Máximo respeito a todos, bênçãos de luz
Jah Guiando


PARA CURTIR O SOM E REFLETIR:
http://www.myspace.com/dacalbr
PARA BAIXAR O DISCO:
http://www.fresh-poulp.net/releases/fpr045/
VISITE TAMBÉM
http://www.reggaemovimento.com

Um comentário:

  1. muito bem!!gostei muito da entrevista o assunto e de tamanha revelância, estamos juntos,
    de Luna Freire

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